esse colapso não é de hoje

Esse colapso não é de hoje
2024 | 40 pág. | xerox preto e branco
texto e PDFs livres

original em português
[com versão em espanhol e francês]

Texto completo disponível aqui.

A versão completa do texto será publicada na zine em xerox através da Faísca Festival de Publicações Experimentais, 2024, com desenhos de diário e ruído.

Uma versão resumida do texto foi publicada na Revista Biodiversidad n. 121, com imagens dos vídeos das oficinas. Disponível aqui

desenhos e texto : Dani Eizirik / Jambalú
zine em xerox: Riacho / Editora Pulo

 


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 ESSE COLAPSO NÃO É DE HOJE 
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Nos dias que antecederam a histórica subida das águas de Guahyba, ou Guaíba, em maio de 2024 no extremo sul da mata atlântica, território hoje ocupado pelo estado brasileiros e rio-grandense, logo antes da lua cheia de abril, eu estava junto a amizades do povo guarani mbya na Retomada da Ponta do Arado. Andávamos entre oficinas de desenho, narrativa e trocas de saberes para um documentário de animação em curta-metragem, por ora chamado Yjere – A volta do canoeiro.

O nome do filme se dá por essa aldeia guarani, em específico, estar retomando um território na margem do Guahyba – corpo d’água doce que não cabe nas classificações da geografia colonial, entre rio, lago, lagoa e estuário – e, retomando a margem, amizades guarani estão resgatando o trânsito canoeiro pelas águas, comum a muitos povos da região até a invasão européia. Chegando pela costa, a colonização empurrou violentamente mbya kuery e outros parentes para perto das nascentes, nos morros do continente. 

Desde 2018, a Retomada da Ponta do Arado protege um pedaço de mata na orla de água doce e sua biodiversidade. Localizada na zona sul da cidade de Porto Alegre, essa pequena floresta é ameaçada pelo mega-empreendimento de um condomínio de luxo e yatch club, em parceria com a prefeitura atravessando uma série de irregularidades para burlar o licenciamento ambiental. 

Contando sobretudo com xeramoi e jexary kuery (vovôs e vovós), alguns jovens e bebês, o histórico dessa Retomada tem passagens muito difíceis, passando por um início duro de sabotagens contra a aldeia – como quebra de motores dos barcos, destruição do poço de água potável, vigilância ostensiva de capangas do especulador e, em 2019, ataques a bala contra os barracos guarani, seguido de pandemia e isolamento. Timóteo Karaí Mirim, ancião e liderança espiritual, relembra tudo com pesar e surpreendente bom humor, combatendo as violências munido da miçangas de capi’i e a fumaça de seu cachimbo petygua. As disputas legais pela demarcação da terra indígena começaram a mudar com a comprovação do sítio arqueológico guarani no local, através da evidência de cerâmicas ancestrais – muitas delas encontradas pelos próprios mbya. [1]

Diante das ameaças, o projeto de filme de animação começou a ser tecido a partir de 2019 na parceria com Timóteo, a equipe do Tela Indígena e a Riacho – mas teve o financiamento aprovado apenas em 2023. [2]

Hoje vivo em Pernambuco. Voltei ao território em março para colaborar graficamente no mapeamento de outras aldeias tekoa no litoral e dar início ao processo do filme Yjere. O filme retrata os trânsitos no local através das gerações, com oficinas colaborativas, no processo de trocas de saberes e o passo-a-passo do desenho animado – de roteiro a desenhos, concepts e storyboards

Acontece que o mês de abril foi marcado fortes ventos, dificultando muito o ir e vir por barco até a aldeia (nesse período a única trilha que dá acesso ao território está alagada). Assim, eu esperava uma brecha de calmaria para avançar cada etapa. Algumas vezes não era possível atravessar de barco, e eu ficava desenhando próximo a igreja, na margem de cá. Até que estouramos meu prazo para voltar pra casa e vi que, para concluir essa etapa, seria necessário passar algumas noites na aldeia. 

Quando o vento abriu uma brecha de calmaria, atravessei. Revisamos o roteiro e, entre as casas-meio-barraco-meio-casinha-tradicional, sob a copa das árvores e a visita dos bugios, rascunhamos e filmamos para desenhar na técnica de rotoscopia, onde o desenho é feito sobre a imagem gravada. A narrativa atravessa séculos e gerações – assim, Timóteo sugere uma abertura onde vemos apenas a água e a criação da terra; a comunidade então encena um passado tradicional pré-colonial; vemos, em conjunto, como o desenho recria os adornos e paisagens ancestrais; encenamos o período do contato; para então o Timóteo encenar seu próprio avô navegando na canoa, com o jovem Caio Wera’i representando o Timóteo criança; até chegar em seu pai, recriando uma aldeia confinada da década de 1950 e os conselhos que o jovem Timóteo recebeu de seu pai, contando de um território cercado por água, yjere, feito ilha, de muita beleza, por onde já caminhou e que um dia seria encontrado para ser protegido e cuidado.

O processo corria tranquilo entre muitas histórias. Fechamos a última diária já na boca da noite, deixando apenas uma breve cena pendente para o dia seguinte. Combinamos de filmar cedinho, para Pablo “Dablio” Werá poder me levar de barco até a margem da igreja e eu voltar para cidade de Porto Alegre, jantar com minha família, e então voar para casa.

Apesar do cançaso, essa última noite era de lua cheia e, com ela, veio a insônia. Balançando a rede, a sós na casinha de lona, observava os raios de lua entrar pelas frestas. Sempre sonhei em operar uma câmera que pudesse filmar o luar, e resolvi sair para testar o alto ISO da Sony ZV-E10 na margem do Guahyba. Estava trocando uma idéia com os patos, também insones na areia, quando escutei uma movimentação nas casinhas.

Pablo Werá vinha caminhando, no frio da bruma.”E aí, Dani, que tá fazendo de pé essa hora?”. Expliquei da lua, dos patos, da Sony ZV-E10. Pablo começou a ajeitar o barco, “ba, o netinho do Timóteo vai chegar 23h, vamo lá buscar ele” – uma furada que logo me dispus a acompanhar e filmar. Timóteo chegou em seguida e cruzamos as ondas tranquilas e silenciosas do grande corpo d’água.

“A noite tá que é um dia”, falamos olhando a lua. A vastidão se fez gigante. Chegamos na prainha do outro lado. E nada do netinho chegar. Timóteo esqueceu o celular. Olhava fixo para frente, e eu andando em círculos. Tentamos tudo que é contato no zap de Pablo, e nada. Passou uma hora, e nada. Entramos mais para dentro, até uma pracinha. Silêncio total. Meia noite, uma vizinha saiu de casa e deu água para encruzilhada. Voltou. E nada do netinho. Desistimos.

Assim que demos meia volta, escutamos o motor de um carro se aproximar. E chegou um uber paralelo, sem aplicativo. O netinho de Timóteo desce do carro com um amigo, dois marmanjos, borrachíssimos da farra. O motorista cobra uma pequena fortuna por terem se perdido e seguimos para as águas. No caminho de volta, o barquinho balança que só, os dois na gargalhada, o cheiro de cachaça, e eu só na miudinha. Pablo dirige a rabeta. E reparo que Timóteo olha o Lua com seu halo enorme, e baixa a cabeça em negativas – como que conversando. Olha para cima, e baixa a cabeça falando baixinho em guarani indescritível. Chegamos na praia da aldeia, cada quem vai pro seu barraco e os jovens seguem na risada, vendo youtube no celular até nascer o sol. 

No dia seguinte, acordo com corpo quebrado e vou para o centro da aldeia para filmarmos a última cena, conforme combinado. Apenas xeramoi Timóteo acordou, e me espera na mesa até que chegue o resto da comunidade. Fumamos no petyngua nhandu – cachimbo-teia-de-aranha feito de barro que Regina Para Poty tinha recém me presenteado. A conversa está curta.

Timóteo me pergunta se eu vi a lua da noite anterior. “Vi sim, claro, estava grande né?”, respondo. Timóteo me pergunta se eu percebi o halo da lua, Jaxy onheamã, não a lua, mas o anel em volta.”Vi sim, com certeza, estava forte né?”. Timótemo me pergunta, “e tu percebeu a ordem das cores desse halo?”. “É…”. “Percebeu que era (algo como) laranja, então amarelo, e então marrom??” (e uma pena eu não lembrar exatamente qual era a ordem das cores que ele falou). “É, não… aí eu não percebi…”, disse. “Pois é, Dani, não são boas notícias. Aqui na aldeia vamos ter que nos preparar para muita, muita água. Vai chover e muito. Vamos nos preparar aqui. Porque vai chover muito, e vai cair pedra de gelo – como é? ‘Granizo’ que vocês chamam”, completou o ancião. Fumamos. E a comunidade foi chegando.

Filmamos a última cena dentro da casa de reza opy’i. Timóteo interpreta o próprio pai falando com ele criança ao pé do fogo, a luz da manhã entrando pelas frestas do barro entre a fumaça. Toda aldeia entra no jogo, inclusive o netinho, que ajudou muito, então com tembekua’a de maderinha furando o lábio do queixo, escutava atentamente os conselhos do avô/bisavô.

A cena deu certo. Juntei minhas trouxas. Despedidas entre abraços. Embarquei na rabeta. O peito quente, toda comunidade na praia acenando. Pablo me levou até a outra margem. “Ha’evete, xondaro“, agradeceu. “Agujevete, xeirũ“, respondi e parti. Esperei um carro diante da igreja, descarreguei os cartões SD, e com minha família jantei as receitas de minha avó.

Passaram alguns dias na cidade, a lua começou a minguar, abril virou maio. E as históricas chuvas começaram. Os rios, muitos deles represados, transbordaram. Cidades colapsaram, sendo varridas nos vales. As águas de Guahyba subiram, e subiram, e subiram. Porto Alegre e toda faixa metropolitana entrou em colapso. Calamidade, mortes, prejuízo sem fim, notícias em rede nacional e no mundo.

Na quinta-feira  noite, dia 2 de maio, assim que o colapso se anunciava, amizades me escreviam para saber se eu ainda estava na aldeia, pediam notícias de lá. Tivemos que agir rapidamente. Respondi que estaria recebendo apoio para comprar lonas para barracos de emergência. Saí das redes sociais para dar conta da ação direta e do volume de mensagens que começavam a chegar de todo canto. Na  sexta-feira, dia 3, ao meio-dia e em meio ao temporal, eu chegava na loja de lonas. Quando vi a soma das doações de uma pequena ação entre amizades, era suficiente para fazer um galpão. Pegamos da melhor qualidade e em menos de 24h, agindo em rede, o material chegou na Retomada para formar base improvisada.

E as águas subiram, e subiram, e subiram. A aldeia começou a ser varrida, a casinha que me abrigou foi logo levada. “Não vamos sair”, disse Pablo pelo whatsapp. “Aqui tudo tranquilo”, ele completou, com a bravura serena que só vi entre mbya kuery. Entendi que deixar o território naquele momento seria dar por perdida a luta dos últimos seis anos; que a aldeia já vive os ciclos das águas no cotidiano; entendi que esse colapso não é de hoje – está ligado a raíz da cidade. Entendemos, em rede, que seria preciso força e mais grupos de apoio nos dias seguintes. Foram acionadas ONGs e organizações maiores para seguir levando água, alimentos, medicamentos, barracas e agasalhos para Retomada – navegando por entre as casas e ruas, então submersas. [3] Passadas duas semanas, começavam a chegar os relatos da chuva de pedras de gelo, “granizo, como vocês chamam.” Timóteo tinha razão.

Dado o tamanho do desastre a nível estadual, a mobilização nacional e internacional crescia a cada dia, arrecadando doações em inúmeras frentes. Haveria muito a contar sobre esses dias em que a corda pareceu estourar para toda gente, mas, como de praxe, mais gravemente para as regiões mais pobres – ou empobrecidas pelo projeto colonial. A Retomada, estando em conflito com o Estado, recebeu apoio de diversos grupos autônomos. Junto com um centro cultural e outras quarto okupas urbanas atingidas diretamenta, uma ação em rede de apoio internacional anarquista começou a arrecadar verbas para recostrução de espaços que não contam com apoio de qualquer governo. [4] Mostrando que solidariedade é mais que uma palavra escrita, as redes que há tempos observam o colapso foram rápidas na ação – não apenas no carárater de emergência, mas na longa reconstrução dos espaços impactados, que com o apoio hoje estão com recursos mais fortes que antes. Para a Retomada, acabamos de entregar o kit de baterias e inversores de painel solar, junto com celular, notebook, etc.

A produção do filme ficou completamente comprometida. Os esforços de realização da animação deram lugar para a demanda dessa “surpresa”, que viemos chamando de “surpresas previsíveis”. O que Timóteo observou no diálogo com o Lua é resultado de um saber tradicional. Esse ancião já escutava de seus ancestrais. Caminhando pelas aldeias, escutamos inúmeros relatos das avós e avôs anunciando o colapso do modo como crescem as cidades nesse território, e muitos relatos são referindo as avós das avós. Que emergência é essa, que vem sendo alertada há gerações? Esse colapso não é de hoje, e taxar como emergência não deixa de revelar um viés racista da escuta, que se nega a ouvir as vozes comunitárias, indígenas e quilombolas, que asseguram as bases de como se vive bem nesse – e com esse – território, promovendo saúde e biodiversidade, no cuidar das matas.

A catástrofe das cidades do Rio Grande Sul reforça a necessidade de uma mudança radical na forma como o meio urbano se relaciona com o território em todo continente. Não é possível manter as cidades crescendo alimentadas por mineração, assoriamento e aterros, devorando toda a mata até a beira d’água.

A solução da necro-política é mais construção, é mais casas, cidades temporárias, extraindo mais madeira, concreto e plástico, abrindo mais clareiras e desertos; fazendo girar as máquinas de um sistema falido, enquanto a polícia expulsa famílias que ocupam edifícios abandonados. A capital não consegue sossegar da sua ganância por lucro, mesmo escancarando a quantidade absurda de casas e prédios vazios ao lado de uma multidão de gente desabrigada. Não há real necessidade de construir novos imóveis. O mercado se excita com o desastre. E sabemos: as soluções não vão vir da causa do problema. Esse modelo de crescimento urbando é responsável pelo risco em que coloca sua massa cidadã, um crescimento que reflete ideais cosmocídas, eco-fascistas, de extermínio e exportação.

A presença da aldeia da Retomada do Arado Velho nesse território é o que vem garantindo a sobrevivência daquele pedacinho de mata, onde ainda se recebe a visita dos bugios, se escuta abelha nativa e a vegetação da beira filtra a água que vem apodrecida pela metrópole, retendo lixo, restos vegetais e a força das marés.  O trabalho que a aldeia faz por todas nós é incalculável.

Nos dias que seguiram o colapso, foi suspensa a da aplicação da Lei Complementar Municipal n° 935/2022, onde a parceria público-privada propunha alterar o plano diretor para impôr um bairro planejado. Em meio a tormenta, o empreendimento por ora fica suspenso; e a comunidade, curiosamente, mais forte e mais próxima da demarcação. Em entrevistas sobre a subida das águas para outros meios, escutei que Timóteo declarava, “agora vocês prestam atenção no nosso deus, né? Mas e no resto do ano todo, pra onde a cidade estavam olhando?”

Temos aqui mesmo, em nosso território, outros modelos de organização coletiva, de arquitetura, de saúde, perspectivas indígenas e quilombolas, que alimentam o mundo e possibilitam a vida vivível humana e não-humana no continente. 

Seguir os modos do Estado colonial é seguir a destruição. Não há reconstrução sem floresta. 

Nenhuma reconstrução é possível sem a escuta desse conhecimento e a participação ativa de quem detém as perspectivas originárias de manejo desse território. É nos saberes locais que vivem os futuros coletivos.

– Jambalú

 

 

[1] + https://racismoambiental.net.br/2018/07/03/a-retomada-mbya-guarani-da-fazenda-do-arado-velho-um-olhar-desde-a-etnoarqueologia/
+ https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/lepaarq/article/view/21714/14783

[2] “YJERE a volta do canoeiro”, curta em pré-produção + @filme.yjere

[3] acompanhe o Centro Social Espaço, Organização Comunitária No Coração da Agulha, Amigas da Terra, CGY Comissão Guarani Yvyrupa, CIMI-Sul.

[4] https://www.gofundme.com/f/espaco-mutual-aid

 

Pela expressão surpresas previsíveis,
agradeço Ramón Vera-Herrera,
e por vida vivível,
agradeço Coletivo Etinerâncias.

com agradecer pelas revisões de Aishá Lourenço, Maíra Posteraro Freire, Marina Mar Machado, Laura Backes e Pablo Werá; e agradecer a toda comunidade da Retomada da Ponta do Arado pelo apoio nos dias de oficina e filmagens junto a Carmen Guardiola, Georgia Macedo, Krishna Daudt, Marcus Wittmann e Sérgio Guidoux.

 

[*] versão resumida do texto com imagens dos vídeos das oficinas
+ https://grain.org/system/categories/pdfs/000/000/585/original/Biodiversidad%20121%20web.pdf